Karatê Huguiano: Algumas percepções de intersecções de diferentes técnicas artísticas
Desde a primeira oferta do TEAC, em novembro de 22, comecei a pesquisar as aplicações das técnicas Huguianas no Karatê, principalmente a técnica da câmera lenta. Mas não me detive apenas na câmera lenta. Todos os conceitos de velocidade (rapidíssimo, rápido, natural, lento, câmera lenta e estático), somado a todos os conceitos de direção (frente, trás, esquerda, direita, cima e baixo) e a todos os conceitos de planos (alto, médio, baixo) revolucionaram a maneira como penso e pratico as técnicas do Karatê. Com isso, expandi, e muito, minhas percepções sobre espacialidade e domínio sobre os movimentos do meu corpo, como um todo, e, consequentemente, sobre os movimentos do Karatê.
Antes
de começar a discorrer, preciso situar quem me lê. Tenho 28 anos de idade e sou
praticante de Karatê desde os 7. Aos 17 anos, me graduei na faixa preta e
passei 8 anos sem praticar o Karatê. Nesses 8 anos que não pratiquei o Karatê,
fui estudar Boxe. Quando comecei a estudar teatro, a primeira técnica cênica a
qual me deparei foi a técnica Huguiana de teatro. Nela me reconectei com a
corporeidade que construí durante 10 anos de prática de iniciação e graduação
no Karatê. Desde então, passei a pesquisar essas técnicas por mim mesmo.
Segundo
Gishin Funakoshi, difusor do Karatê de Okinawa no Japão e no mundo, o Karatê-dô,
traduzido por “caminho das mãos vazias”, é uma série de técnicas de defesa
pessoal que servem tanto como um treinamento artístico, quanto espiritual e
físico. O Karatê-dô enquanto arte marcial surge da mistura do Kung Fu do sul da
China, com práticas de luta dos habitantes nativos da ilha de Okinawa. É importante comentar que hoje em dia Okinawa
faz parte do Japão. Contudo Okinawa é uma ilha em um arquipélago ao sul do arquipélago
japonês. Esta ilha fora um reino independente do Japão por séculos, mas com a Restauração
Meiji, que derrubou o Shogunato e restaurou o poder à família imperial japonesa,
o Japão começou uma série de ações imperialistas em busca de uma modernidade em
comparação aos povos do ocidente. Dentre essas ações imperialistas, várias campanhas
militares anexaram territórios ao domínio japonês. Dentre essas ilhas, Okinawa
fora ocupada e anexada e o Reino Ryukyu deixa de existir quando a monarquia de
Ryukyu é forçada a morar em Tóquio. O uso de armas era proibido em Okinawa e o
estudo de artes marciais também. O Karatê-dô se desenvolveu como uma forma
secreta de defesa pessoal. Com a ocupação japonesa, houve um esforço pela
difusão do Karatê-dô enquanto prática desportiva nas escolas a partir do final
do século XIX. O auge da difusão se deu a partir dos anos 20 do século XX,
quando Gishin Funakoshi passa a difundir seu estilo, o primeiro sistematizado
em graus de aprendizagem, o Shotokan.
Por
ter se desenvolvido de maneira velada e secreta, não é à toa que primeiramente
vem ARTES e depois marciais. Minha teoria é de que, apesar de ser uma prática
de defesa pessoal, que deveria se esconder diante de uma opressão, a
marcialidade dessas vem, justamente, desse caráter do fortalecimento físico e
espiritual a partir de uma prática que também é artística e meditativa. Ela não
se resume apenas ao campo artístico, haja vista a necessidade de suas práticas
serem eficientes para a defesa pessoal, mas a parte artística é determinante
para a essência do Caminho das Mãos Vazias.
Não
realizei uma pesquisa aprofundada sobre o acesso de Okinawa a esse tipo de
material, mas tenho uma intuição de que a filosofia do Karatê dialoga, e muito,
com o pensamento de Sun Tsu em "A Arte da Guerra". De certa maneira,
o ideal de um grande general, como aquele capaz de vencer uma guerra sem
derramar uma gota de sangue, apenas posicionando suas tropas, dialoga com o
Karatê. Isso não significa que o grande general não derrame sangue, mas diz
sobre não derramar sangue desnecessário. Isso indica um domínio em termos de
estratégia e em termos espaciais. Essa lógica é presente no Caminho das Mãos
Vazias, quando pensamos em práticas como os "Katas”.
De
maneira geral, os Katas são traduzidos como formas. Essa tradução pode ter os
sentidos ampliados, quando se pensam os Katas — fazendo uma referência ao
samurai Miyamoto Musashi, "de um exemplo deve-se tirar dez mil". A
tradução das palavras utilizadas por Gishin Funakoshi para ensinar o Karatê são
amplas demais, possibilitando uma diversidade de interpretações, o que é um
reflexo direto da história da origem do Caminho das Mãos Vazias. Os Katas são
sequências de movimentos que combinam técnicas de defesa e ataque, enquanto, ao
mesmo tempo, servem como um treinamento de fortalecimento físico e espiritual
para o praticante.
Os
Katas são diferentes, de acordo com as escolas às quais elas originaram, como
os dojos que os praticam e cada Kata tem uma interpretação diferente de como o
artista o faz. O que importa no estudo do Kata não é, necessariamente, a
sequência dos movimentos, mas a FORMA como se faz cada sequência. A maneira do
artista importa para sua interpretação. Fora do mundo das competições
esportivas de Karatê, não há nada que proíba uma prática de um Kata
completamente em câmera lenta. Ou uma prática completamente rapidíssima. O
importante no estudo do Kata é estudar as diferentes formas de se aplicar
aquelas técnicas, não importa o plano ou a direção que você esteja.
Os
próprios Katas já introduzem o estudante do Karatê a uma movimentação pelo
espaço utilizando-se dos conceitos de planos e direções para aplicar suas
técnicas. Em um dos Katas, o Bassai — que significa "Penetrando a
Fortaleza" — é uma sequência de 40 movimentos, sugeridos que sejam
realizados em 1 minuto. É uma percepção pessoal, porém, entendo que para
penetrar uma fortaleza é preciso, não só força bruta, mas também um domínio
técnico de defesa pessoal e domínio extremamente preciso da espacialidade ao
seu redor. Para penetrar uma fortaleza é necessário ter uma noção do que
acontece 360ºao seu redor, assim como sugere Hugo Rodas para o oficio do
artista: É preciso que o artista afete conscientemente 360º ao seu redor, por isso
é tão importante o treinamento das direções, mas também o treinamento das
velocidades, pois é na câmera lenta que se adquire precisão, e no andamento
rapidíssimo que se descobrem coisas novas de maneira fluida e ininterrupta. É
muito difícil resistir aos impulsos do cérebro na câmera lenta. Daí a
dificuldade da descoberta de novos caminhos. Mas uma vez que se resiste ao
cérebro, e se descobrem novos caminhos, esses caminhos são conhecidos em
detalhes precisos.
As
técnicas do Karatê são extremamente complexas de se compreender porque não são
apenas técnicas mortais de defesa pessoal voltadas ao combate. Mas este fato as
caracteriza fortemente, e aí reside a marcialidade do Caminho das Mãos Vazias. Uma
interpretação possível dos Katas é os pensar como uma forma de enfrentar
diversos inimigos de uma vez, já que o karateca ideal acaba com o combate com o
mínimo de golpes necessários — e é isso o que faz com que eu acredite que o Karatê-dô
dialoga fortemente com a Arte da Guerra de Sun Tsu. Se o duelo pode acabar em
um golpe, o karateca ideal não vai proferir dois golpes. Por esse motivo, para
além de uma prática física e beligerante, a prática do Karatê vem atrelada à
uma filosofia e prática espiritual. As técnicas mortais do Karatê são treinadas
a partir de formas, que podem funcionar como danças (se assim quiser o
artista), mas o fundamento está nas POSTURAS.
Toda
técnica mortal é empregada embasada em uma postura. O treinamento das posturas
consiste no artista se colocar e permanecer naquela posição. Muitas vezes os
mestres colocam seus discípulos para permanecerem estáticos nas posturas, o
que, com o tempo e com o treino, se torna uma prática meditativa. Cada postura
há um nome e uma frase a se pensar, a partir daí, a prática sobre essa postura
vem atrelada a uma meditação sobre a maneira como se portar.
Por
exemplo, a postura dos pés unidos é semelhante à posição de sentido. O que isso
diz sobre a maneira de me portar? Em minhas meditações cheguei à seguinte
conclusão: "se é semelhante à posição militar de sentido, vou me apropriar
artisticamente dessa informação e ampliar todos os meus sentidos."; já a
postura do cavaleiro, o praticante se coloca no espaço de maneira tal que é
possível imaginar que ele esteja montando em um cavalo. Com isso a maneira como
ele posiciona os pés, joelhos, quadril e baixo abdome são muitíssimo
importantes para formar esta imagem externa e internamente. Além disso, essa é
uma postura de força e que fortalece as pernas do praticante enquanto este
medita na postura. Por fim, Gishin Funakoshi diz que quem domina a postura
perde todo o medo. Uma vez que suas bases são firmes e sua postura é forte, não
há mais nada a temer.
O
campo espiritual do karatê é trabalhado durante a meditação, pois é nela que se
aprende, consciente ou inconscientemente, a manipular energias e a projetar e
direcionar suas intenções no espaço a partir das técnicas de mão e de pé. Por
exemplo: uma coisa é você dar um soco. Mesmo que se coloque toda sua força física
no golpe, é completamente diferente quando este soco tem a intenção de desmaiar
seu oponente, ou de quebrar sua convicção de atacar, uma vez que você se
apresenta mais forte e com um maior domínio técnico, espacial, estratégico,
espiritual. Mesmo que, o dano físico não seja tamanho, o dano psíquico e espiritual
pode decidir os rumos de um combate de vida ou morte.
A
prática meditativa das posturas do Karatê não precisa ser estática. Meditar fazendo
essas posturas me fez perceber que para a defesa pessoal ser ainda mais eficiente
o mais importante não é apenas o treino de força bruta ou da técnica empregada.
O treino técnico e muscular são determinantes para uma situação de
sobrevivência, porém o mais importante é o estado de presença. A partir
desse estado de presença adquirido na prática meditativa do Karatê-dô que é
possível manter a calma diante de uma situação de vida ou morte. Em uma situação
dessas, é necessário esmagar seu adversário com a força de sua presença e
desferir cada golpe com presença e intenção.
A
arte do Caminho do Meio está no fato de que para ter um corpo ativo e
fortalecido, é possível treinar com a mesma sensibilidade artística e estado de
presença de uma câmera lenta. Antes de tudo, a prática meditativa e de
manipulação de energias através das posturas e das técnicas de mão e pés do
karatê são práticas de exercício de sensibilidade artística e de presença.
Esse
papo parece exotérico, mas estive em uma situação de vida ou morte em um
episódio de minha vida e o que me salvou foram as técnicas do karatê. Quando
isso aconteceu, eu ainda não sabia colocar intenção em meus golpes. Apesar de estar
vivo, saí ferido deste embate. Em outra oportunidade, cara a cara com meu
malfeitor, me mantive na postura natural e fui capaz de expandir minha presença
e intenção no espaço sem me mover do lugar, assim como um artista cênico é
capaz de afetar pessoas à distância projetando sua presença e intenção. Desde
essa ocasião, fui capaz de experimentar a sensação de afetação cada vez mais sensível
pelo espaço.
Nestes
quase dois anos de prática do que hoje chamo de Karatê Huguiano, vim
desenvolvendo com consistência os fundamentos. Ainda não fui capaz de avançar
os estudos nem para o treinamento básico sugerido por Gishin Funakoshi (chamado
Kyhon), muito menos para os Katas. Isso porque só consegui meditar ativamente
em 5 das 7 posturas ensinadas no livro Karate-do Kyohan, e praticar 3 técnicas
de mão, não tendo praticado nenhuma técnica de pé. Isso porque neste estudo
aprofundado da prática de Karatê, venho buscando ter um domínio satisfatório
das técnicas antes de passar para o próximo passo.
Referências:
CAFÉ, Flávio. O QUE APRENDI COM MEU
MESTRE: Mapeamento dos princípios técnicos utilizados por Hugo Rodas.
Dissertação de Mestrado: Universidade de Brasília, 2014.
FUNAKOSHI, Gishin. KARATÊ-DÔ KYOHAN: O Texto Mestre. Editora
Cultrix, São Paulo, 2009.
TSU,
Sun. A ARTE DA GUERRA. Editora Golden Books, São Paulo, 2007.
MUSASHI,
Miyamoto. O LIVRO DOS CINCO ANÉIS. Editora Novo Século, São Paulo, 2015.
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